terça-feira, abril 18, 2006

Em memória do respeito

Sempre que morre alguém conhecido as televisões fazem desse acontecimento um espectáculo mediático. Muitos directos, muitas entrevistas a anónimos que conheciam o falecido muito bem da televisão e muitas entrevistas a pessoas que sempre foram amigas dele e que o conheciam desde pequenino. Depois os testemunhos: foi sempre boa pessoa, nunca fazia mal a ninguém, aparecem "n" pessoas que eram capazes de colocar as mãos no fogo pelo defunto (mesmo não
o conhecendo de absolutamente parte nenhuma), era amigo de todos and so on, and so on... Vem este post a propósito da morte do Francisco Adam (Paz à sua alma...), um dos actores dos "Morangos com Açúcar". Confesso que, apesar de ver a série (por razões que eu própria desconheço), até ontem não sabia o nome do actor e apenas o da personagem: o Dinoman.

Ontem ao fim do dia e no decorrer dos telejornais (que vejo sempre em bom estilo zappeiro, porque gosto de comparar as diferentes formas de tratar as notícias) deparei-me com os directos da TVI (a quem parecia que tinha saído um daqueles jackpots do Euromilhões) e com as respectivas reportagens sobre o grande assunto do dia para aquele canal. Retive quatro momentos (espalhados pelo telejornal) daquilo que vi e que não resisto a partilhar neste "ovo-mole" (para explicação desta expressão ver post anterior).

- 1. Num dos directos do "Jornal Nacional" a jornalista (cujo o nome não retive, porque a barrigada de riso foi superior) dizia com um ar grave e sério:" o corpo do actor chegou à igreja precisamente por volta das ... horas". Vamos lá a ver se nos entendemos: ou foi precisamente ou foi por volta das... Agora isso não é nada e por muito que me digam que um directo deixa uma pessoa nervosa e todo o blá blá blá daí adjacente, eu afirmo: existem blocos de notas onde se podem escrever algumas das coisas que se vão dizer e assim não fazer má figura ou, neste caso, figura ridícula.

- 2. No decorrer de uma reportagem questionavam alguns jovens sobre o actor e uma das perguntas brilhantes estava relacionada com as conclusões que se podem tirar deste caso. E para uma pergunta linda, uma resposta ainda melhor: "E um exemplo de vida", disse uma adolescente toda contente por
estar a falar para a televisão. Mais uma vez desatei a rir, mas que raio de pergunta é essa de saber que conclusões se tiram daqui e depois a resposta que interpretei assim: morrer na estrada é um exemplo de vida. Como???? Podem repetir???? Só dá para rir.

- 3. Fiquei a saber que, desde domingo, a recta do Infantado (local onde se deu mais um trágico acidente) se tornou num novo local de romaria popular. Pessoas que deixam flores e pessoas que dizem coisas como esta "Gostava muito dele. Nunca o conheci. Mas gostava do papel dele na novela, porque era bem disposto e fazia-me rir. Assim que soube do acidente disse logo que tinha de cá vir para ver e vim". E eu, mais uma vez, ri-me. Analisando pormenorizamente o discurso, esta senhora, que até foi sincera ao dizer que não conhecia o rapaz, teve o seu momento alto quando afirmou que tinha de ir
ao local do acidente. Mas porquê essa necessidade mórbida de visitar o local onde alguém morreu? Acharia ela que indo até lá o moço ressuscitava? Confesso que não entendo esta vontade súbita de ir ver o local do acidente, que dá em algumas pessoas. É mórbido, muito mórbido.

- 4. The last but not the least: uma criancinha, no máximo com uns 10 anos, dizia ontem numa reportagem: "Estou triste. Não estava nada à espera." E ainda bem, digo eu! Meu lindo menino, nunca ninguém está à espera da morte, mesmo quando são casos terminais (e não falo de cor, infelizmente.)

Tirando as minhas próprias conclusões, parece-me que, por estes dias, a TVI consegue transmitir dois circos diariamente. Infelizmente, um deles é fruto de uma tragédia que roubou a vida a um jovem de 22 anos e que, de repente, se transformou num mártir nacional. Mas coloquemos as coisas nos seus
devidos locais: infelizmente, mortes nas estradas há todos os dias e, infelizmente também, morrem muitos jovens nesses acidentes. Este era conhecido porque fazia parte do elenco de uma série que passa na televisão diariamente e cujo sucesso ninguém consegue explicar. Soube-se entretanto que este rapaz já tinha "espatifado" um carro há poucas semanas num outro acidente. Ora quem
anda à chuva molha-se e todos sabemos (sejamos condutores ou passageiros) que na estrada todo o cuidado é pouco. Se daqui se conseguir tirar alguma conclusão e com isso fazer uma campanha de prevenção dirigida a todos (e não apenas aos mais jovens) tanto melhor. Mas eu, que nem sou uma pessimista, apenas consigo ver que o espectáculo vai continuar numa televisão perto de si.

Pena é que, com estas espectacularidades todas e luta desalmadas pelo pico das audiências, fiquem para trás o respeito e o luto daqueles que na verdade amavam e estimavam a companhia do Francisco! Mas esqueça-se a dor e a perda em nome de valores tão altos como as receitas de publicidade e as
audiências.

Saudações virtuais

NB - Estou em crer que se esta situação se tivesse passado num dos outros canais nacionais, o circo montado seria o mesmo. Uma tristeza. Perder alguém é sempre um momento duro e nestas ocasiões isso raramente é respeitado. É triste...

4 comentários:

Empregado de balcão disse...

Muito bem escrito. Outra coisa não seria de esperar da TVI. Sempre a dar o máximo...

Que triste. Espero que utilizem os morangos para prevenção rodoviária, já que aquilo tem tanta influência nos jovens.

AMAFAS disse...

É impressão minha ou de repente parece que tivemos apenas um morto na Operação Páscoa? E os outros?

É verdade que os outros canais poderiam ir pelo mesmo caminho, mas no caso da TVI, eu tive a certeza absoluta que iria fazer o que realmente fez: aproveitar-se!

Comes-lhes a carne e ainda lhes chupas os ossos!

O Mafarrico disse...

O mundo televisivo tornou-se num autêntico circo. Infelizmente faz-se de tudo um circo - as vidas e tragédias das pessoas, os eventos nacionais e internacionais polémicos (porque dos importantes, mas chatos, ninguém fala) e a própria profissão de jornalista. Os jornalistas do teledrama foram reduzidos ao papel de hienas, que não param de assediar as figuras de relevo com perguntas que nada podem trazer de relevante e que nada têm de discreto ou de respeito pelo outro.

Aproveitando o que foi dito pelo empregado de balcão, já que o rapaz tem de desaparecer da novela, que façam dela um espelho da realidade e usem-na para educar... Que, infelizmente, aquela porcaria tem muito pouco de educativo.

Undisclosed Recipient disse...

Muito bem escrito, parabéns. Vejo as coisas da mesma maneira. É triste mas depois só dá vontade de rir com as barbaridades!!!